Instabilidade Estável

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ARTISTAS: Alexandre Rato, André Griffo, Andrei Muller, Daniel Murgel, Dirceu Maués, Milton Marques, Vanessa De Michelis

CURADORIA: Juliana Gontijo

EXPOSIÇÃO DE 26 DE JANEIRO A 6 DE ABRIL DE 2014

Proposta selecionada para a 1ª Temporada de Projetos 2014 do Paço das Artes, São Paulo (+ info)

Estabilidade provisória, instabilidade permanente. A entropia, grandeza termodinâmica correspondente à variação de estados inerentes num sistema, pode ser interpretada como um princípio de desordem ao nível microscópico. Contempla, portanto, a dissolução da matéria e a liberação irreversível de energia no interior de um sistema, conduzindo-o a um funcionamento incoerente e instável. Esse conceito, reapropriado para a esfera da arte e da cultura, se contrapõe ao pensamento moderno ainda dominante, que procura incessantemente impor a ordem sobre o caos da materialidade, a fim de transcendê-la. Esta operação de controle é igualmente outorgada aos governos, com suas leis e forças policiais. Porém, as manifestações sociais ocorridas de forma intensa nos últimos anos, no Brasil, na Europa e nos países árabes, deixam entrever o profundo processo de desestabilização constante do estado normalizado dos elementos – políticos, sociais, culturais – do nosso entorno. Percebemos, então, a coerência arbitrária e provisória que define cada época.

As propostas artísticas aqui apresentadas evidenciam-se como sinais dessas oscilações e do caos subjacentes à contínua tentativa de ordenamento e estabilização das estruturas sócio-políticas coletivas e – pensando nas micropolíticas de poder foucaultianas – individuais e subjetivas. Alexandre Rato, André Griffo, Andrei Müller, Daniel Murgel, Dirceu Maués, Milton Marques e Vanessa de Michelis recorrem à marginalidade como escolha política e problematizam tanto aspectos da sociedade e do indivíduo padronizado, quanto o próprio sentido atual da arte. Causam interferências e ruídos ao tornar manifesto um mal estar contemporâneo e ao escolher assumir-se “sem lugar”. Mostram o não acabado, o informe, a sujeira, o barulho, o híbrido, o inclassificável. Fogem da fetichização tradicional do objeto artístico e do demarcar de suas fronteiras, a fim de imiscuir-se por outros terrenos, estabelecendo na prática uma relação ampliada entre arte, cultura e comunidade.

Dessa forma, a instalação Amnésia de Murgel faz brotar, de ruínas emergidas no espaço expositivo, a sensação de constante construção e dilaceração do tempo. Utilizando peças de mobiliário soterradas e um piso semelhante ao do local de exposição, a instalação conecta dois aspectos temporais, o passado e o futuro num presente inatual. O anacronismo temporal é algo presente também no trabalho de Andrei Müller. Imersas num fluxo constante de um imaginário corrosivo, as pinturas de Müller mostram uma energia visceral que combina uma transformação constante e quase mística da matéria tanto no ato da pintura como no momento de recepção da obra: formas brotam da pintura aparentemente abstrata, indicadas sutilmente pelo artista, como num sonho vertiginoso. Seu trabalho em vídeo combina um trabalho minucioso de edição com um conceitualismo místico de um renascer caótico.

Entre o grafite e o registro poético, Alexandre Rato recupera compulsivamente cadernos, cadernetas, folhas soltas para servir de suporte para seus desenhos e anotações, deixando transparecer a sujeira e a contaminação como parte de sua linguagem poética. O suporte deixa então de ser uma superfície neutra para agregar uma narrativa do urbano e industrial, entre o desperdício e a recuperação constante. De maneira semelhante, Quarta Experiência – Placa de André Griffo é uma escultura que reelabora formalmente velas coletadas num cemitério, fundidas e moldadas em uma forma que deixa enfatiza o rigor geométrico ao mesmo tempo em que mantém, em sua materialidade impura, suja e contaminada, traços da sua primeira combustão.

A instalação Inversões na paisagem de Maués busca instaurar novas maneiras de ver a partir de experimentos com a câmera escura – aparelho óptico milenar que utiliza os princípios da fotografia moderna-, aliada a uma economia de recursos. Dessa forma, caixas e cubos de papelão se transformam em máquinas de visão para o redescobrimento do espaço exterior, explorando a precariedade de materiais, a instabilidade da imagem e a ruptura da oposição dentro/fora. Ao tratar também sobre a precariedade material do mundo contemporâneo, as reprogramações de artefatos tecnológicos por Milton Marques atuam na reelaboração poética de materiais descartados. O artista recupera câmeras, motores e outros artefatos eletrônicos para elaborar, a partir de conhecimentos básicos da eletrônica, pequenas máquinas que ironizam o utilitarismo tecnofílico atual, além de remeter à memória e à formação de subjetividades.

Zilah Exposta é uma performance na qual Vanessa de Michelis compõe ao vivo uma paisagem sonora, sobrepondo várias camadas de sons a fim de tentar reelaborar, entre o documental e a ficção, a situação de agressividade sonora da noite de remoção do bairro de Zilah Spósito, na periferia de Belo Horizonte. Com a luz cortada, completamente no escuro, tudo o que se podia perceber era o som de percussão de panelas, código sonoro entre moradores para alertar uma situação de perigo, o ruído de casas sendo destruídas e os gritos da população sendo agredida pela polícia militar a serviço do Estado. A performance combina sonoramente os relatos de moradores com os ruídos gravados da reconstrução das casas. Encontra-se, aliás, em contínuo estado de atualização ao incorporar constantemente sons de outras manifestações, como cantos indígenas e palavras de ordem contra a construção da usina de Belo Monte, no Pará.

Manifesta-se, portanto, uma condição singular da contemporaneidade em sentir seu próprio tempo por meio “de uma dissociação e um anacronismo. (…) Aqueles que procuram pensar a contemporaneidade puderam fazê-lo apenas com a condição de cindi-la em mais tempos, de introduzir no tempo uma essencial desomogeneidade” (Agamben, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Editora Argos – Unochapecó, 2009). O sentimento contemporâneo está, pois, nessa inadequação ao presente e na percepção da coerência arbitrária e provisória que define cada época, percebendo a impermanência e a instabilidade entre coisas e ideias.

Juliana Gontijo  /// Janeiro de 2014

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